Kamel - H. R. Rodrigues

23 de dezembro de 2016

Autor: H. R. Rodrigues
Páginas: 224
Ano: 2016
Editora: Dusty Miller Publishing
Gênero: Romance
Onde comprar: Mercado Livre
Nota:     
Sinopse: Uma história sem tempo e sem apelo. Sem idade e sem público. Meio fábula, meio manifesto. Vozes de personagens que talvez existam dentro de nós. Que deveriam existir, ou que já desapareceram ante o desleixo alheio para com percepções humanas tão rebuscadas. Literatura. Apátrida e orgulhosa. Clássica e visionária. Rica, delicada e maciça. Uma alucinação bordada com o ferro dourado do passado, contas de vidro turquesa e gotas de nanquim.
Resenha: 

Kamel é uma história, como já diz a sinopse, que não se passa em lugar nenhum, não tem rosto, idade, nação, cheiro ou cor. Mas o que ela não conta é que se passa em todos os lugares, é de todas as idades, tem todos os rostos, pertence a todas as nações, é perfumada por todos os cheiros e é bem colorida. É uma história sem dono, mas que é de todo mundo. O pequeno avestruz, que recebe o mesmo nome que o livro, nos leva a fazer uma viagem aos confins da mente do jovem Miguel, um rapaz no auge dos seus 17 anos, que tem uma opinião formada sobre tudo e até então achava que se conhecia muito bem. Apesar de sua idade, ele é ligeiramente diferente daqueles que partilham a mesma época de vida e na teoria partilhariam os mesmos sonhos e anseios. Criado por seu avô, Seu Berg, e supostamente abandonado pelos pais, Miguel passa seus dias entre a escola, o trabalho na cafeteria sueca do avô, muitas páginas de alguns livros e deitado no tapete azul, embaixo das flores brancas que habitam o galho da árvore mais bonita que o faz companhia através da janela do seu quarto.

Em uma manhã nada incomum, aparentemente, o demônio retorna e redefine todos os pensamentos de Miguel. Este demônio, protagonista da chegada do garoto ao mundo, não desperta nada além de indiferença no rapaz, que analisa com muita imparcialidade as circunstâncias que o trouxeram até o momento em questão. A história é inteiramente construída com base nisso, nas reflexões de Miguel sobre seus sentimentos, sobre sua consciência e sobre o mundo em que vive. A subjetividade é o ingrediente principal desse prato literário e tenho que admitir que ele não seria tão bom se fosse ligeiramente mais claro.

Entre os acontecimentos que sucedem o temível retorno, Miguel passa por inúmeros questionamentos de uma personalidade que a muito já estava solidificada em sua mente. Passamos muito tempo imersos em sua cabeça para tentar entender a origem de emoções tão adversas do esperado. Eis que então, em meio às largas passadas na praça, ele conhece a intrigante Loretta, uma garota com penas nos punhos e asas nas palavras, que com sua conversa adocicada e poética preenche o espaço que Miguel, até então, nem havia se dado conta que estava vazio. Ela agita seu pequeno e sólido mundo interior e o apresenta a sensações novas e singulares que ele passa algumas (muitas) páginas tentando decifrar.

Em apenas dois dias, Miguel vivencia diversas situações que muitas pessoas demoram eras para começar a sentir. Ele sofre o impacto de um retorno, se apaixona perdidamente, sente todos os seus sonhos e ambições mudando, tem o coração partido (mais de uma vez diga-se de passagem) e por fim aceita e supera suas dores. O livro é completamente psicológico e durante todos esses conflitos de Miguel conseguimos adentrar nos aspectos mais profundos de sua personalidade e enxergamos não só seus desejos, mas seus defeitos também. Ele é um garoto que sente demais e por mais que alguns sentimentos sejam desconhecidos, quando ele sente é de verdade e com uma força que contagia o leitor. Exatamente por isso, a intensidade da história é levada para outro nível e nos pegamos sentindo e pensando como se fossemos ele. A autora narra de maneira tão intensa que é como se estivesse dentro de nossa cabeça e todas as palavras a nossa frente fossem simplesmente um reflexo de nossa mente. Ela dá vida a muitas coisas que nunca paramos para pensar e coloca forma a emoções deformadas.

Me identifiquei muito com a escrita da autora, porque é aquela escrita extremamente pessoal e interna, mas que faz total sentido mesmo para quem está de fora do contexto. Cada um que lê faz sua própria história e coloca sua própria personalidade naquelas palavras, tornando-as uma parte de si. O livro é cheio de referências a lugares e a vida que ficam tão bem escondidas que precisamos ler e reler alguns trechos mais de uma vez para conseguirmos compreendê-las. A história cita a própria história de maneira sutil em penas de avestruzes, cheiros e desenhos de azulejos que só conseguimos ligar os pontos se estivermos completamente imersos na narrativa. Os simbolismos presentes enriquecem as metáforas e abrem questionamentos que, querendo ou não, todos nós passamos em algum momento. Por isso, esse é um livro que deve ser lido mais de uma vez e em fases diferentes da vida, porque à medida que a história vai se desenvolvendo percebemos que usamos nossa individualidade (sempre mutável) para interpretarmos as palavras.

Kamel dialoga com o que é ser adolescente e principalmente com o que é ser uma pessoa. Dialoga com nossos sentimentos, com a intensidade deles e com os impulsos que eles nos levam a seguir quando cedemos ao que sentimos. Dialoga com o preço que estamos dispostos a pagar para irmos atrás de nossos sonhos e principalmente o efeito que uma pessoa tem na outra. Por um momento Miguel esteve aberto a negociar seus anseios para estar com Loretta, mesmo que esse relacionamento fosse causar apenas perdas e eternos joguinhos psicológicos que não chegam a lugar nenhum. Ele estava tão entregue ao sentimento que não conseguia enxergar isso. Se formos parar para pensar isso também acontece conosco, nos cegamos por sentimentos tão profundos que esquecemos de nos perguntar se eles realmente valem a pena o sacrifício de nossa própria personalidade e de nossa própria vida para os alimentar.

Ler esse livro é como repensar nossa vida, lembrar de nossos amores e dores. Se quiser montar no avestruz e viajar para mundo que escondemos dentro de nós mesmos basta estar disposto para abstrair muito, esquecer a singularidades da física e da realidade, ligar o botão da imaginação e deixá-la fluir por entre as páginas e as palavras que formam essa (nossa) história.

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